18/01/2017
Noticia-se que membros dos serviços secretos e de segurança norte-americanos estão “preocupados” com a interferência russa nos resultados das eleições norte americanas. Tal interferência, através do hackeamento de informações e da disseminação de informações falsas sobre a candidata Hillary Clinton, via redes sociais, teria beneficiado o candidato Donald Trump no resultado. Essas declarações do governo americano têm levado a uma cruzada histérica de boa parte da mídia ocidental, incitando o governo dos EUA a uma confrontação com a Rússia. Certamente uma estratégia de alto risco, já que o resultado final a que se poderia chegar, uma guerra entre as duas superpotências, envolveria parte do mundo, teria consequências para todos e talvez não sobrasse ninguém para contar a história.
Em política internacional, a hipocrisia e a dissimulação desconhecem limites. Ainda mais em se tratando dos EUA, país que tem larga tradição de intervenção, e organização de golpes e quarteladas em todos os cantos do mundo em defesa de seus interesses econômicos e geopolíticos. País que incitou, no período recente, guerras civis, caos e desestabilização em inúmeros países, como Afeganistão, Iraque, Tunísia, Egito e Síria, e em alguns desses casos se envolveu diretamente, só para citar casos mais recentes. Um governo que, somente em 2016, lançou 26.171 bombas em sete países, sendo que, deste número, 12.191 foram lançadas na Síria, 12.095 no Iraque, 1.337 no Afeganistão, 496 na Líbia, 34 no Iêmen, 12 na Somália e três no Paquistão (dados do Conselho de Relações Exteriores dos EUA, que podem estar subestimados). Em 2016 os EUA lançaram 3.027 bombas a mais do que no ano anterior.
O pretexto utilizado pelos EUA para bombardear e desestabilizar países é o de restauração da democracia. Só tem um problema: nenhum país que sofreu a intervenção dos EUA tornou-se democrático. Pelo contrário, as intervenções norte-americanas invariavelmente deixam um rastro de violência, desorganização da economia, mortes e crescimento da pobreza. Observe-se, por exemplo, o que fizeram na Síria, país no qual incentivaram protestos contra o governo, utilizando grande número de mercenários, bandidos e fanáticos religiosos, e cuja guerra civil produziu, até o início de 2016, quase 300 mil mortos e mais de 4,5 milhões de refugiados. Além disso, o argumento da restauração da democracia cai por terra quando se observa que a mesma atitude não é tomada em relação a países aliados dos EUA – só para ficar na área do Oriente Médio, citemos o caso da Arábia Saudita.
O Brasil se encontra neste momento no epicentro geopolítico dos interesses dos EUA, neste lado do mundo. O golpe de Estado que assalta o Brasil está inserido no contexto da chamada “Guerra Híbrida”. Tipo de guerra não convencional, que usa instrumentos linguísticos e simbólicos, e que tem como objetivo central garantir os interesses dos EUA e destruir projetos que, de uma forma ou outra, não se coadunem com os interesses do Império.
Segundo o estudioso do assunto, Pepe Escobar, os países que compõem o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) são os primeiros alvos da Guerra Híbrida, por uma série de razões. Dentre elas a intenção de realizar transações financeiras e comerciais com moedas próprias e criar um banco de desenvolvimento, que possibilitasse a autonomia financeira em relação ao FMI e às agências multilaterais de desenvolvimento hegemonizadas pelos EUA, como o Banco Mundial. A “Guerra Híbrida” é utilizada pelos Estados Unidos visando assegurar a perpetuação de sua hegemonia econômica, política e bélica.
Segundo Escobar, o conceito de Guerra Não-Convencional surgiu em 2010, a partir do Manual para Guerras Não-Convencionais das Forças Especiais do Exército dos EUA. Diz o Manual: “O objetivo dos esforços dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças de resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos.
[...] Num futuro previsível, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em operações de guerras irregulares.
(Do artigo de Pepe Escobar, “O Brasil no Epicentro da guerra Híbrida”.
Os EUA sabem da importância estratégica do Brasil para a geopolítica na América do Sul, algo quase natural em função das magnitudes de sua economia, população e território. Ocorre que aquele país imperialista não admite divergências com sua política internacional, principalmente nessa região. Os governos brasileiros, a partir de 2003, ousaram praticar políticas minimamente soberanas, como a oposição à proposta da Alca defendida pelos EUA, e a organização do BRICS, que ameaça, inclusive a hegemonia do dólar.
O Brasil, ademais, comprou aviões da Suécia, ao invés de adquiri-los nas empresas norte-americanas. Comprou helicópteros da Rússia e montou o projeto de submarino nuclear em parceria com a França. Votou, em 2010, a Lei de Partilha, contra o desejo das multinacionais do petróleo, que estavam de olho na riqueza do pré-sal, maior descoberta de petróleo no milênio. Além disso, o Brasil estreitou laços com os parceiros sul-americanos, fortaleceu o Mercosul e continuou o projeto de produção de enriquecimento de urânio, estratégico para o Brasil, e sobre o qual os americanos vinham tentando obter detalhes.
A aproximação do Brasil com a Rússia e a China, através do BRICS, talvez tenha sido a ação mais crítica, do ponto de vista dos interesses do Império. A agressividade dos EUA tem sido especialmente dura contra a Rússia. Contra este país têm sido utilizadas sanções econômicas, apoio a oposições com componentes neonazistas (como na Ucrânia), guerra com o preço do petróleo e gás, e muita manipulação da informação, especialidade das estruturas de informação e espionagem norte-americanas. É que este país, herdeiro da anterior superpotência URSS, antagonista dos EUA na chamada “Guerra Fria” não baixa a cabeça em relação à defesa de seus interesses e joga o xadrez geopolítico com competência e soberania.
No caso do golpe no Brasil a estratégia foi um pouco diferente da utilizada contra outros países do BRICS. Com a ajuda dos meios de comunicação de massa, de um parlamento conservador, de um sistema judiciário conivente, para dizer o mínimo, do dinheiro grosso dos setores empresariais e da imensa fragilidade do governo, deram o golpe. O governo Dilma, ao tentar contemplar de certa forma os interesses econômicos conservadores, acabou rompendo com a sua base social (com a qual acabara de se reeleger), ficando inviabilizado para enfrentar qualquer tipo de golpe mais sofisticado. Incendiou-se a classe média, utilizando a bandeira da luta contra a corrupção, velha conhecida de outros momentos da história brasileira (tais quais o “mar de lama” de Lacerda contra Getúlio nos anos 1950, ou a “vassoura” de Jânio contra JK no fim dos anos 1950, ou o discurso anticorrupção dos militares contra Jango e a chamada “República Sindicalista” em 1964). Com um enredo antigo, mas instrumentos, carros alegóricos e passistas novos, se consuma o início de mais um tipo de golpe no Brasil.
Pelo Manual da Guerra Híbrida, segundo Pepe Escobar, é estratégica à incitação da classe média contra as denúncias de corrupção, e a adesão dos grandes meios de comunicação. Difundiram a ideia de que o Brasil é o país mais corrupto do mundo e que a corrupção é fenômeno surgido a partir de 2003. É amplamente vitoriosa também a narrativa golpista, de que o país está quebrado em função dos gastos com as políticas sociais, especialmente com os mais pobres. Neste momento o dever de todo brasileiro que ama o Brasil e quer um presente e um futuro melhor para brasileiras e brasileiros é denunciar o golpe de Estado em andamento e todos os seus dramáticos malefícios, que se não forem interrompidas, seguramente irão não apenas fazer o país retroceder, como comprometer as próximas décadas de desenvolvimento nacional.
Fonte: Dieese/SC